Está no outro. É do outro. Não é meu. Foi a chuva. Foi o calor. Foi ele...
O que do outro está em mim? O que de mim está no outro?
Xiii! Momento difícil de reflexão e de reconhecimento que estou implicada em tudo e que, de certa forma, também sou responsável por tudo. Não queria ser.
Hoje foi um dia excepcionalmente difícil. Comecei o dia até bem. Às 08:15, estava no Córrego do Jenipapo, em uma reunião com a equipe da Unidade de Saúde (mais uma das seis Unidades que, a partir desse mês, precisarei visitar mensalmente). Sai bem instigada! Ô povo bom!
Segui para o almoxarifado central da Prefeitura, atrás dos materiais do Albergue. Depois de algumas horas, sai de lá com o carro carregado. Pense em uma alegria. Fazia uns dias que eu me desdobrava para conseguir esses materiais.
À tarde, quando já estava em outra reunião, tive a notícia de que um hóspede do Albergue havia passado mal e foi encaminhado com suspeita de AVC para o Hospital Getúlio Vargas (HGV). Foi deixado lá sozinho, porque, além de viver em situação de rua, não tem referência familiar.
Sai da reunião direto para o HGV, onde vi cenas que não me saem da cabeça e, nesse exato momento, mesmo com todo o cansaço, me impedem de dormir. Parecia uma guerra. Um corredor, cheio de pessoas agonizando. Uma ensangüentada, um gritando de dor, outro todo defecado... não havia espaço sequer para os brutos maqueiros empurrarem suas macas.
Brutos? E como não ser bruto? Fiquei impressionada porque naqueles corredores não vi ninguém pedindo “licença” ou “por favor” ou ainda dizendo “boa noite”. Caras fechadas, ombros que se empurram, num corredor apertado. Tentei falar com alguns funcionários. Tentei conseguir um lençol, porque o meu paciente tremia de frio. Mal as pessoas conseguiam me dizer “não”.
Aí fiquei pensando nessa história... no que eu senti, quando entrei ali. Se cada profissional daquele sentisse o que eu senti, quando entrei ali, de duas uma: não teria mais ninguém disposto a trabalhar ali ou, então, todos enlouqueceriam. É! Para suportar um trabalho em condições tão precárias deve mesmo ser preciso embrutecer.
Encontrei meu paciente desorientado. Sem saber para onde ir e sem ter ninguém que o ajudasse. Tentei fazer isso e, depois de algumas horas e de alguns “não”, ele foi atendido e encaminhado para fazer uma tomografia. Quando já estávamos com o resultado na mão, soubemos que ele só seria liberado depois que falasse com um neurologista. Ou seja, só amanhã de manhã.
Eis que começamos uma nova saga: conseguir uma maca, para que ele pudesse dormir. Depois de apelar para a chefe da enfermaria, utilizar do argumento de poder, me colocando como uma colega, coordenadora de um outro serviço, consigo uma maca. Porém não há chão para colocá-la. Sim! Não tem um espaço vazio que caiba essa maca! Tive que disfarçar os olhos enxarcados, que traziam uma mistura de indignação, compaixão e desespero mesmo. Afastei umas cadeiras, falei mais alto e coloquei a danada da maca entre as cadeiras.
Depois disso, me encaminho ao serviço social do hospital, para falar sobre o caso e para solicitar que, na manhã seguinte, alguém pudesse encaminhar o paciente ao médico, uma vez que o paciente não conseguiria chegar ao médico sozinho. A assistente social me disse que era IMPOSSÍVEL FALAR EM ATENDIMENTO PARTICULARIZADO. Eu tentei falar mais sobre o caso, coloquei que ele era morador de rua, não tinha referência familiar, não tinha ninguém... e ela (também embrutecida) me disse que não poderia fazer nada. Como não? Perguntei ainda como eles lidam com moradores de rua e ela disse, simplesmente, que eles não lidam. Os moradores ficam jogados por lá até serem atendidos... quando? Não se sabe!
Aí, inicio um outra luta. Conseguir alguém que pudesse estar no HGV amanhã para dar esse suporte. Liguei para Gerente do Distrito, às 22h, e felizmente ela me atendeu. Me escutou, apoiou, autorizou que pagássemos hora extra a um redutor de danos, para que fosse feito esse acompanhamento. Uma luz no final do túnel. Alguém ainda preserva humanidade, sensibilidade... agradeci tanto que acho que ela estranhou. Afinal de contas, não estava fazendo mais do que cumprir a sua função. Mas, num serviço de saúde embrutecido, de pessoas que precisaram embrutecer... ela foi hoje um pingo de esperança. Que bom! Cheguei em casa às 23:30... isso mesmo! De 07:30 às 23:30 na rua. Morta! Mas não consigo pensar em dormir. Muitas imagens na cabeça, muitos sentimentos misturados. Muita tristeza sim. É muito ruim pensar nas pessoas que estavam naquele corredor. Nas histórias que ouvi. Penso também em “Seu fulano” (meu paciente). Em como ele deve estar, naquela maca, entre cadeiras. Queria poder fazer mais. Queria poder ajudar mais. Como dói não poder fazer mais. O sentimento agora ainda é de tristeza... só espero conseguir transforma-lo em força e resistência. Porque é preciso sim, mesmo diante de tantas adversidades, tentar não embrutecer.
Voltei de viagem há um pouco mais de uma semana, mas ainda me sinto aí... nessa janela; quase uma parte dessa paisagem. Como de costume, voltei do Rio cheia de desejos e promessas. As mais variadas...
Voltar a escrever – blog criado! Ainda com poucas postagens, mas está aqui! Fazer regime – hoje faz uma semana, com uma pequeeeena folga na Páscoa! Voltar a ter um dia para Lucas – ainda não conseguimos delimitar um dia. Mas estamos conseguindo ter momentos mais nossos. Procurar estar mais com os amigos – até tentei, mas, como passei uma semana fora, preciso de uns dias a mais para me reorganizar. Consegui pouco. Fazer atividade física – já agendei fazer caminhadas, em alguns dias, mas ainda não fiz nenhum. Falta disposição e companhia. Desacelerar – ainda não sei como começar a fazer isso.
Enfim... escrever me fez ver como avancei pouco no cumprimento das minhas promessas, mas, de qualquer forma, escrever é também uma forma de reafirmar o meu compromisso comigo! Vamos ver...
Em tempos de mudança, eis que de uma mistura de Rio de Janeiro, com trabalho, prazer, em um caldo de vontades insaciáveis de transformar a mim e aos outros... surge um blog. Apenas um. Passageiro? Talvez. Não importa. Por enquanto, por não caber mais em mim, vou me espalhando por aqui.