sexta-feira, 16 de outubro de 2009

A dor do outro

Hoje eu pude sentir. Como um punhal no meu peito, cortando-me ao meio e me mostrando o quanto sou pequena, impotente. Ele chegou me desafiando; falando alto; comendo dois pães, quando só podia um; mentindo e, a todo momento, mostrando com o olhar como era perigoso, como nós devíamos temê-lo.

Em plena tarde de sexta-feira, cheguei. Nem estava nos planos. Havia planejado ir para casa mais cedo, estudar, preparar o dia de amanhã, que promete ser tão especial. Mas algo me levou ao Albergue. Parece que era dia de me ver pequena e repensar não só meu trabalho... repensar a vida.

Ele tava com o olhar furioso. Estava diante de uma assistente social, que vinha lhe trazer um dinheiro. Na verdade, vinha pegar uma assinatura, pois o dinheiro seria entregue a seu pai. Ele não aceitou e, como estava no seu direito, após ter prometido que não iria fazer mau uso desse dinheiro, recebeu.

NOVENTA REAIS. Pouco? Não. Muito. Para ele, uma fortuna.

Ele recebeu o dinheiro, entrou no grupo, que já ia começar e, ao sair, pediu sua alta. Disse que não estava agüentando: precisava fumar crack. Incrível! Ele não brigou com ninguém, não inventou nenhum pretexto. Apenas disse: preciso fumar.

Ele fuma há três anos e jamais tentou deixar de usar. Era a primeira vez que tentava parar, começar um tratamento, mas ele não suportou. Eu vi os seus olhos arredios se encherem de água. Eu ouvi a sua voz tremendo. Pedi que sentasse, peguei uma água e tentei conversar com ele; lhe dizer que era possível resistir àquela fissura. Ofereci várias alternativas. Falei sobre suas conquistas, sobre como era importante ele falar sobre aquela vontade de fumar e como era ainda mais importante resistir a ela. Gastei todo o meu latim. Todo! No final, tentei sensibilizá-lo para retornar, sem nem saber se ele sobreviveria a essa recaída.

Ele chorou muito. Dizia que ”só com uma algema” conseguiria permanecer ali. Tentei lhe mostrar que essa algema não tínhamos, mas ele poderia construir essa algema com a sua vontade de não usar, de reconstruir a sua vida.

Quando não tinha mais jeito, quando ele já estava com a bolsa nas costas, sugeri que ele se alimentasse, que ele se cuidasse. Indiquei um ambiente protegido... não restava tanto a fazer. Desejei boa sorte e pedi que se cuidasse.

O sentimento que fica é que não consegui. Não consegui mostrar para ele o quanto sua vida poderia ser importante, o quanto ele ainda tinha a viver. Não consegui convencê-lo do quanto ele era forte e do quando essa força poderia ser convertida em um “não”.

Que poder tem esse danado de crack que faz com que as pessoas digam “eu não quero, mas vou”? Que poder temos nós de acabar com a nossa própria vida e, assim, acabar com a vida dos que estão ao nosso redor? Que poder tenho eu, coordenando aquele lugar, de ajudar essas pessoas?!

Hoje, o sentimento é a dor e a consciência é de impotência.

Um comentário:

  1. Edna! que bom vc também é blogueira...
    E que texto! quantas vezes não me senti da mesma forma? quando o submundo é mais importante que a própria vida, mas que vida?
    "como feri e faz barulho um bicho que se machucou, viu?", eu pensava muito nesse trecho quando eles vinham de peito estufado e passavam a imagem de perigo, perigosos... são para eles mesmo né?
    Impotência! interessante que este é um sentimento que persegue quem está do outro lado, infelizmente nada é mais relevante quanto uma pedra de crack para eles e o que fica para nós é esse sentimento de impotência...

    o que nos restam são as somas (ainda que tímidas) de resultados exitosos!

    boa sorte
    beijos Camilla

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