segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Nudez é outra coisa...

Um trecho de texto de Frei Beto, que ontem, após um final de semana leve e divertido (como há muito tempo não havia), entre as linhas de um longo e chato relatório, me fez pensar na vida... na vida e em viver!

"(...) É isso, não consigo ver o que os outros enxergam, não consigo rir do que os outros acham graça, não consigo deixar de ser eu mesmo, desconfiado, taciturno, porque são muitas as minhas cismas. Por exemplo, coleciono fechaduras e fotos de rinocerontes. Fechaduras, é obvio, servem para fechar, porque o ser humano não suporta a transparência. Precisa sempre se cobrir: de pêlo, máscaras, teto, muro, porque a nudez é uma arte que exige talento. Ainda que um homem e uma mulher estejam sem roupas, trancados num quarto, entregues às infinitas possibilidades do jogo erótico, não significa que estejam nus. Estão despidos. Nudez é outra coisa. É enfiar a faca até o cabo, arrebatar a lua com as mãos, destampar todos os recônditos da alma, os mais obscuros e ínfimos. Se nem suportamos ficar nus diante de nós mesmos, quanto mais diante dos outros! Por isso as fechaduras deveriam estar de língua recolhida, mas quase sempre elas se projetam interditando-nos.Por que fotos de rinocerontes? Faz tempo sonhei que eu era um rinoceronte, daqueles enormes que pesam toneladas. Locomovia-me com muita dificuldade, o que exigia paciência de todos à minha volta. Ao atravessar uma rua, eu me encontrava a meio caminho quando o sinal abria, irritando os motoristas; no cinema, precisava ocupar meia fila de cadeiras; no restaurante, comia metade do bufê.Gosto das esferas elegíacas. Da arte que não exprime lamento, dos primitivistas que ponteiam suas telas com o talento que supera todas as formalidades acadêmicas. Sou por eflorescências. Quase toda semana irrompem em mim vulcânicas primaveras. São flores de fogo. Procuro fixá-las em retábulos e, no exercício de iluminuras, copiá-las em pergaminhos. Porque só flores e borboletas superam as obras-primas da arte universal. Mas não sou dado a caçar borboletas.Não me agradam as idéias ajaezadas. Prefiro-as despojadas, diretas, translúcidas. Há dias em que me recolho à biblioteca do mosteiro em que vivo e passo horas contemplando iluminuras de manuscritos antigos.Eis que me apareceu em sonhos um homem cujos sapatos tinham bicos finos e longos; na cintura, profusão de laços; as mangas eram tufadas como balões e os punhos de renda. Ele estava de pé num salão fechado por cortinas de cores brilhantes, pontilhadas de estrelas de ouro entre espaços vazios cheios de sóis. Em volta, capitéis e um pesado brasonário. E ele sabia que a ataraxia é uma propriedade das mais belas esculturas.Súbito, ele começou a dançar em movimento suaves. Não havia música, apenas uma orquestra invisível de rinocerantes imensos e diminutos, gordos e delgados, altos e baixos, pesados e lépidos. Todos traziam fechaduras em suas patas arredondadas e ao abri-las e fechá-las imprimiam o ritmo que conduzia o dançarino. Acordado do outro lado do sonho, fiquei a me perguntar se tamanha ilogicidade que preside as emanações do inconsciente não seria a verdadeira lógica que a razão tanto teme e repudia (...)"

Do livro "A arte de semar estrelas".

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